sábado, 4 de julho de 2009

Caiçara, quem é você?

Um povo dividido entre as tradições e a modernidade


"As manifestações folclóricas fazem parte da história de um povo, uma gente que, muitas vezes, não sabe nem escrever o próprio nome, mas tem uma cultura popular riquíssima. Essa cultura está se perdendo, sendo esmagada pelas construções, pela modernidade e pelas novas culturas que migram e se misturam..." - Nei Martins, folclorista, caiçara ubatubense

Carnaval de 1976. Nascia uma nova escola de samba em Ubatuba. "Mocidade Alegre do Itaguá" era o nome ideal para essa escola, que foi composta por um grupo de jovens amigos daquele bairro. Nei Martins era um dos componentes da "Mocidade" ubatubense. Para o primeiro de muitos carnavais que se seguiriam, o enredo do samba tinha que ser mais que perfeito. "Nós precisávamos de um enredo que tivesse a cara da cidade, da nossa gente, da nossa história. Decidimos por fazer um desfile que mostrasse a cultura popular do povo caiçara, conta Nei."

Foi durante a pesquisa que antecedeu a composição do enredo do Carnaval de 76, que Nei Martins percebeu o quanto os costumes e as tradições ubatubenses estavam se modificando. Cantigas, danças, comidas, roupas, modos de ganhar dinheiro... Tudo se transformava a olhos vistos, como a própria paisagem do município. Os costumes, antes adquiridos como herança de família num passado não muito distante agora vagavam, em fragmentos de memórias, aqui e ali. Não havia nada documentado em livros, a cultura caiçara estava ameaçada de extinção.

Naquele momento, um grande trabalho de resgate se iniciava na vida do jovem Nei Martins. Ele se apaixonou pelos "causos", pela devoção religiosa e pelas manifestações artísticas dos caiçaras. Começou a colher informações, depoimentos e imagens que remontassem a história. Passou anos, "proseando" com os antigos, anotando o que eles diziam. Ele acabou desenvolvendo um trabalho intuitivamente jornalístico, que descreve com detalhes personagens e experiências.

Transformações

As tradições de Ubatuba refletem a cultura dos espanhóis, índios e negros, adaptadas para a realidade da nossa gente. No caso do povo caiçara, o fato de morar na beira do mar, em meio à natureza contribuiu para que as manifestações culturais tivessem características próprias. Fandango, ciranda, chiba, cana-verde, recortada, dança da fita, corrida de canoas, festa de São Pedro Pescador e procissão de barcos são alguns dos costumes derivados do Brasil Colonial, suas festas, suas crenças.

Na década de 50, a exuberância da natureza ubatubense começou a atrair pessoas de outras cidades. Condomínios, loteamentos e estradas ergueram-se em lugares onde só se chegava andando por estreitos caminhos mata adentro. Os caiçaras sertanejos, artesãos ou pescadores, que viviam de vender mandioca, banana, farinha ou frutos do mar passaram a ser jardineiros, caseiros, porteiros, empregados dos veranistas que aqui construíram casas para passar férias com as famílias.

A inauguração da BR-101, em 1970 marcou um novo período de intensas modificações na cidade. Com a estrada, chegou também a eletricidade e por conseqüência, o mais sedutor dos meios de comunicação: a televisão. Segundo Martins, a soma desses fatores resulta em uma grande modificação no comportamento dessas famílias. "A televisão trouxe até o caiçara, um novo conceito de vida. Ele começa a se espelhar nas novas modas, muitas vezes sem condições adotar esses padrões. Nesse momento, o caiçara começa a perder sua identidade, tentando se identificar com coisas que não pertencem à sua cultura".

Um dos poucos jovens caiçaras que reconhecem e lutam para que as tradições não se percam é Mário Gato. Ele trabalha com um velho caiçara chamado "Seu" Ricardo e depois de ouvir muitas histórias e canções de seus antepassados, aprendeu a tocar e esculpir rabeca, um instrumento medieval parecido com violino. Gato conta que decidiu aprender a fazer e tocar rabeca para que esse conhecimento não se perdesse. "Como o Seu Ricardo já está velhinho, eu me senti na obrigação de aprender o instrumento porque, se ele falecesse, sem passar seu conhecimento para ninguém, levaria junto a tradição da rabeca".

Caiçara é uma cultura que resiste

Em Ubatuba, existe um bairro urbanizado, bem perto do Centro, chamado Itaguá. É um dos bairros mais tradicionais do município, apesar do inevitável avanço da modernidade. Entre as diversas atrações turísticas, os quiosques à beira mar, os shopping’s, bares, hotéis, restaurantes e pousadas, existe um povo que luta para manter suas tradições.

As festas realizadas na Capela do Itaguá seguem os ritos e os padrões de centenas de anos. A "Folia de Reis" ainda visita as casas do bairro em época de natal. Por ser um bairro tradicional, a maioria das pessoas se conhecem e seguem a doutrina católica. Mário Gato conta que a Folia de Reis é conhecida no bairro e faz parte das festividades de fim de ano. "Quase sempre visitamos as mesmas casas, mas quando as pessoas vêem na rua, pedem para levar a folia à sua casa, nós vamos, então, sempre tem gente nova sendo visitada também".

Um grande obstáculo para levar adiante as manifestações culturais caiçaras, tal como eram feitas no passado é falta de identificação desses costumes com os mais jovens. Tais costumes foram sendo trocados gradativamente por outras manifestações, difundidas, em grande parte, pela mídia. André de Abreu Damásio, caiçara de 27 anos diz que a cultura mudou tanto "de uns tempos para cá" que os jovens se sentem constrangidos de dançar os mesmos passos e vestir as mesmas roupas usadas por seus pais e avós. "A molecada hoje não quer saber, eles sentem vergonha. Os colegas dão risada, tiram sarro... Então, naquela idade entre 12 e 20 anos, eles acabam se afastando e não retornam mais."

André não liga para o que os outros pensam. Diz que participa por gosto, por diversão. Ele é mestre da dança da fita, tradição passada por seu pai, Élvio Damásio. "A gente não pode nunca esquecer das nossas tradições. Eu acho que um povo sem cultura é um povo sem memória."

Ubatuba não é um caso isolado. Em todos os lugares, a tecnologia mudou os costumes da sociedade. Novos conceitos vão sendo somados à cultura antiga, resultando em outros ritmos, passos de dança ou até mesmo a exclusão de alguns costumes. Em Olímpia, por exemplo, a tradição se mantém através da renovação. Os chamados grupos para-folclóricos são compostos por uma grande quantidade de jovens. As manifestações culturais se adequaram à realidade contemporânea, misturam o novo e o antigo, tornam-se atraentes aos olhos dos jovens.

Na opinião de Nei Martins, a única forma de preservar a cultura caiçara é dar apoio às fundações de arte que fazem um elo de ligação entre o antigo e o novo. Há muitos anos ele defende a criação de um Centro de Tradições Caiçaras, que trate exclusivamente da cultura dessa gente. "Desde as festas, a comida, o ato de esculpir uma canoa, tecer uma rede de pesca, cozinhar um peixe com banana, tudo centralizado em um só ambiente, mostrando para turistas e moradores que nós temos uma cultura, que temos orgulho disso e queremos mantê-la viva. Isso seria um grande passo, rumo à preservação da nossa identidade", sonha Nei Martins.


Nota do Editor Extraido do site www.ubaweb.com: Editor : Aline Rezende é jornalista, meio poeta, um tanto quanto caiçara e completamente utópica. PUBLICIDADE

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