O primeiro canto leva o nome: De conceptione Virginis Mariae. A concepção de Maria antecede a modelagem da criação. É interessante mencionar aqui que o espírito mariano da maioria dos espanhóis encontra na figura feminina de Maria uma tabua de salvação . Enaltecida pelo espírito cristão da Idade Média, nas famosas Cantigas a Nossa Senhora de Gonzalo de Berceo, Anchieta tenta reconstruir o espaço na sua frente, confiando no caráter medianeiro de Maria que do outro lado do mar tinha sido enaltecida pelos peregrinos que sabiam do sofrimento e da solidão da experiência mística. “Não espanadavam ainda os mares nem desciam as águas fluviais pelas vertentes”, sobre o chão replica o religioso “não havia o borboletear das fontes nem a grandeza das moles altíssimas” e já fora concebida a inteligência eterna – o Verbo, predestinado seu ventre a redimir o pecado original.
Perfeita e dileta, como um antídoto ao veneno da serpente, prometida nas manchas edémicas, turvadas pelo crime de Eva. Com o dragão sob os pés, dulcis amica Dei, ela paria acima dos coros angelicais. O fruto bendito é anunciado pela boca dos profetas nos céus. Anchieta fecha esse primeiro canto anunciando Maria, a mulher mais forte que o homem.
Maria nasce no segundo canto após a noite milenar. Um novo sol se levanta, raiando a estrela virgem. O fulgor nominal da senhora ressoa neste poema anchietano em forma de ladainha, seguindo a ordem alfabética das composições abecedárias do Sedulius no qual faremos algumas adaptações para seu melhor entendimento:
Arbor, sublime árvore cujas raízes bebem humildemente do solo, os galhos frutificando em estrelas. Baculus, frágil bordão nos quais se amparam os homens incertos e aflitos. Collis, alta colina que verte o doce perfume nas trevas. Doctus, maravilhosa correnteza de águas provenientes da fonte divina. Effigies, verdadeiro espelho onde o próprio Deus se reflete. Fulmen, a fulgurância do raio na tormenta que aniquila os crimes tártaros. Gemma, metal precioso no qual se desvanece a pompa metálica do ouro e do bronze. Hydria, urna estelar das Hyades cristãs, vaso de leite e óleo, aroma e graça. Jaculum, o antigo jáculo ou venábulo, ferindo suavemente os corações para sarar profundas chagas . Luna, sagrado e imutável plenilúnio dando ao ocaso dos seus contempladores a impressão de alegria solar. Maré, mar profundo, amplidão sem areia de gigantescas e infinitas da vida, refugio dos bons e dos maus. Navis, a nave que socorre os náufragos arrojados e levados à praias remotas. Ober, óbice colocado no santuário com o fim de evitar a devastação dos touros indômitos, no limiar do templo às heresias e demônios, Portus, sereno ao qual vier se achegar o poeta, navegador exausto, sacudido pela fúria do vento e guiado pela mão da Virgem – reminiscência católica dos temporais brasileiros. Quadriga Dei, impetuosa quadriga de Deus, arrebatada pela justiça em tropel ressoante, a esmagar os inimigos da fé. Rosa, imarcescível no estio e no inverno, rosa a nascer de espinhos, mas não deles ornada. Speculum, Signum, Sydus, Stimulus, Salus... Tegem, primeiro tecido cobrindo o pudor de Adão, o rubor de Eva, a nudez lamentável do corpo ou da alma. Virga, açoite das macerações eclesiásticas, vara desnuda e flexível com que se retalham e sob a qual se retorcem os penitentes.
Continua , confira atualização no dia 26/01/08
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