quarta-feira, 10 de outubro de 2007

O QUE É SER CAIÇARA.....

Claudia de Oliveira, que se auto-reconhece como caiçara, nos oferece um belíssimo depoimento do que é ser caiçara, atrelado à forma simbólica de representação do mundo.

Eu, caiçara... uma mistura de gente de toda gente! Cheiros, formas e cores... diferentes! Ingleses, bugres, alemães, portugueses e tantos outros que por aqui passaram; sem contar o sangue que corre nas veias, herança tupinambá. Este povo que guerreou até o fim, lutando pela terra da qual eram donos por direito, pois ‘eram os primeiros’ (os denominados tamoio). Da fusão das etnias surgiram os caiçaras, moradores à beira-mar, os também conhecidos como barriga-verde (devido ao fato de alimentar-se do peixe cozido com a banana verde).

Nós também somos um povo guerreiro que luta pela sobrevivência de nossa infinita e rica cultura, que percorre os mares e ilhas, alojasse nos mangues, brinca nas ondas do mar, caminha pela sombra do chapéu de sol, canta suas tristezas, conta em verso suas alegrias, trilha pelas colinas, banha-se nas cachoeiras...

Faço parte de um povo sábio que traz na alma a sabedoria de ser nobre na simplicidade. Contemplamos o sábio dos sábios, o sr do tempo, um guru tão complexo! Mas que quando o entendemos a vida fica ‘mais...deliciosa’, ele que nos diz em um simples olhar quando vai chover ou vai fazer sol ou mesmo que hora é. É ele que determina a época da colheita, se ela vai vingar ou mesmo quantas luas são necessárias para apanharmos o alimento na hora certa. Os ventos, aquele que leva as coisas ruins e traz as boas também é dito por ele, quando solta no ar o cheiro da vassourinha (planta da região), não tarda muito, o vento noroeste esta por chegar, logo atrás dele vem o vento que traz a chuva; é hora de ‘apoitá os barco’. O alimento ofertado pelo mar também tem época certa, garoupas, paratis, sargos, infinita quantidade, mas que para ter seu merecimento no prato, tem-se que entender muito do traiçoeiro mar, e ficar atento de sol a sol, lua a lua... Ah! A lua, que surge com fases diferentes de tempos em tempos, ela que determina quase tudo na vida de todo ser vivo, imagina então de nós caiçaras, que mesmo sabendo que hoje muitos são estudados, tantos outros moram em lugares que ainda se usa o lampião. Amores, rumores de estórias de lobisomem, apanhar a madeira na lua minguante para que não tenha caruncho, não pegar o pescado na lua cheia pois a fêmea esta em algum mangue parindo novas vítimas. Enquanto isso embalamos em algum lual, no ritmo da xiba e depois um banho de mar; ou ainda aproveitamos para pagar alguma promessa dançando de noitinha até ao amanhecer a dança de São Gonçalo. Eu, como todos os outros caiçaras, vítimas do mundo globalizado, estou aqui digitando estas palavras na tela de um computador, do qual para muitos leitores soará como um achado. Puxa! Ninguém mais ouve minha gente, acham que somos preguiçosos quando estamos quietos, apenas a observar, esperando o tempo certo para plantar, ou colher. Pobres daqueles que não percebem que para tudo tem um tempo certo, pois, se ele é demais o fruto apodrece, os amores passam... se ele é de menos o fruto é verde, o amor ainda não está pronto! A velocidade das informações onde tudo que falamos hoje, amanhã é informação ultrapassada! O mundo gira em uma velocidade atroz, produzindo uma nova raça que agem como donos da verdade!! Apenas suas verdades! Uma raça confusa, que vivem em busca do outro, fugindo de si mesmo! Para fazer paz, usam armas de fogo! Dizem ser ecológicos por modismo, mas tiram do caiçara o direito de plantar em seu quintal! Amor não é mais embalado pelo reflexo da lua cheia, é sim através da projeção da mesma em uma tela computadorizada em qualquer momento do dia ou noite que possa desejar! Em nome do progresso construíram seus muros. E quanto maiores, ‘é-difícios’ foi ficando! Assim, só nos resta lutarmos até o fim para preservarmos nossa raça, nossa cultura, nossa história, uma gente que apesar de estar dia a dia sendo massacrada pela evolução do século XXI, vítimas de demagogos, ainda assim, somos uma gente que cai- e-çara!!!! Até o fim... contando para todos quem somos, interferindo na história, sobrevivendo e aprendendo com o mundo contemporâneo, mas nunca deixando de observar, a lua... o mar, estes que muito tem a nos falar, a sabedoria, que ficou de herança, como havia mencionado dos tupinambá. Assim vivemos com nossas tragédias, fazendo poesia, com um sorriso no rosto e a felicidade na alma, sofrida e aprendiz. Não tomamos mais café com caldo de cana; puxamos o picaré (rede puxada por dois homens beirando a orla) ou consertamos (limpar) o peixe, mas nossas praias tem nomes indígenas, como Itaguá, Itamambuca, Puruba, e tantos outros assim como nosso município Ubatuba; já nossos nomes tem variações como Rocha, Santos, Cabral, eu mesma, Claudia que guardo o Gonzaga e só uso Oliveira, sobrenomes portugueses, espanhóis, tupis; raízes tão entrelaçadas que unidas construíram um país, aqui mesmo nas terras de Yperoig (hoje Ubatuba), Hans Staden, Padre José de Anchieta, Ciccillo Matarazzo, ´Confederação dos Tamoio’, etc, etc, etc, quem somos? Somos filhos da história de um país que se chama Brasil.

FONTE : LIVRO " Ubatuba, Espaço, Memória e Cultura, dos autores Juan Drouguet e Jorge Otávio Fonseca , editado em 2005.

Sobre o livro : Ubatuba – espaço, memória e cultura é uma obra que se origina de uma amizade entre um habitante da cidade e um estrangeiro, para situar-se como um projeto de sistematização regional, visto na perspectiva do turismo, da história e da cultura local

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